19/08/2006
Ano 10 - Número 490


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


 

O BRASILEIRO GILBERTO AMADO
 

 

 

Causa real admiração a lucidez com que Gilberto Amado (1887/1969) via as coisas brasileiras. Enquanto muitos se compraziam em citações, em geral de estrangeiros, e em exibir erudição, o sergipano procurava penetrar em nossas realidades e delas extrair conclusões úteis ao país. Esses estudos, hoje concentrados em sua obra de ensaísta, nos volumes de memórias ou nos discursos proferidos ao longo da vida parlamentar dão uma mostra do cientista político que ele foi. O discurso “As instituições políticas e o meio social no Brasil”, embora proferido em 1916, portanto há noventa anos, e o volume de sua autobiografia “Presença na Política”, para citar apenas dois, não podem ser ignorados pelos que desejam conhecer o Brasil, e que, apesar do tempo decorrido, estão recheados de ensinamentos sobre esta terra que ele tanto amou. É lamentável que seus livros estejam esgotados e não se fale em novas edições, embora integrem o elenco de páginas da maior importância em nossa cultura.

A leitura de Gilberto Amado é uma permanente surpresa. Além do estilista inigualável, suas idéias brotam dos textos em profusão, sempre originais, inovadoras e tantas vezes inesperadas. Envoltas numa linguagem personalíssima, muitas têm o lampejo do gênio e ganharam o domínio público, repetidas até por alguns que lhes desconhecem a autoria.

Entre os múltiplos temas que abordou, está a revolução, ou o direito de empreendê-la. A propósito da “Revolução de Isidoro” (1924), mostra que o mal-estar social que a elas conduz é originário da pobreza, pois nos países ricos as revoluções são cada vez mais raras. O remédio contra elas, como também observaria mais tarde Monteiro Lobato, é o enriquecimento do país para que os cidadãos “em vez de revoltados contra a pátria e as leis de seu país” fiquem “rindo com desprezo, como ri qualquer boy americano a quem lhe fale em revolução, revolta, sedição, rebelião, agitação.”

Outro assunto que muito preocupou o seu espírito e do qual resultou um de seus mais brilhantes ensaios foi a representação política. “Eleição e representação” é dos melhores discursos que proferiu na Câmara (1925) e cuja ampliação se tornou o volume do mesmo título (1931). Um dos tópicos abordados e que ainda se apresenta nebuloso entre nós, nos dias de hoje, é o voto secreto. Vale a pena ler pequeno trecho do que escreveu:
“O que há é uma grande confusão a respeito de voto e de democracia. Não é o ato de votar que caracteriza o voto: é o nexo político entre o votante e o votado. Nos países em que há idéias políticas em jogo, o eleitor vota por suas idéias, seus pontos de vista, seus interesses, e escolhe os indivíduos que a seu ver melhor representam essas idéias ou melhor podem combater por elas. Assim, o eleitor trabalhista vota no candidato trabalhista que reúne maiores qualidades para o êxito de sua causa. O eleitor republicano radical, no que mais firmemente ou mais galhardamente mantém os princípios do radicalismo. O eleitor conservador, republicano moderado, centrista ou extremado realista ou católico nos candidatos respectivos.” Mais adiante, aludindo ao eleitor brasileiro ou boa parte dele: “Seria uma mentira ridícula dizer que esses eleitores sabem ou procuram saber das idéias, dos pontos de vista, dos interesses dos chefes locais. Os laços que entre eles existem são laços de ordem pessoal, aos quais são alheios quaisquer outros (...) Só há regime representativo quando há alguma coisa a representar, e só se representam idéias, princípios, programas, pontos de vista.” Teriam as coisas mudado muito desde então? O troca-troca de partidos parece evidenciar que continua a inexistir entre eleitor e eleito aquele nexo a que se referiu.

Mas foi em 1927, já no Senado Federal, que ele proferiu a célebre afirmação de que “não há mais lugar no mundo para os liberais.” Ela causou surpresa, espanto, até certo escândalo. Gilberto Amado era insuspeito, sobre ele não recaía sombra de radicalismo, suas opiniões mereciam o maior respeito e seus discursos eram ouvidos com grande interesse, repercutindo sempre na grande imprensa. Isso acirrou o debate através dos jornais, pois não se tratava de coisa de um leviano ou de um apaixonado. O incidente foi bem resumido em livro sobre a atuação parlamentar de Gilberto Amado, nestes termos:
“Em agosto de 1927, em aparte ao senador Barbosa Lima, que, em discurso, se referia às conquistas do liberalismo, Gilberto observou: “V. Exa. está passando um mau quarto de hora, porquanto V. Exa. é um liberal, e não há mais lugar no mundo para os liberais.” A frase suscitou grande celeuma na imprensa, o que obrigou o senador por Sergipe a explicá-la e comentá-la no discurso que proferiu na sessão do dia 11 desse mesmo mês. Esclarece então Gilberto que, no sentido político-religioso, o liberalismo é uma forma compendiada na fórmula de Cavour: “A Igreja livre no Estado livre”, conquista já obtida, desde vários anos, por todos os povos civilizados, coisa pacífica, esquecida, que ninguém mais discutia. No sentido estritamente político, “o liberalismo é a doutrina segundo a qual os cidadãos procuram obter as garantias de liberdades políticas que todas as constituições modernas, há mais de cinqüenta anos, consagram, e se objetivaram em passado menos imediato na luta pela separação do Poder Legislativo e do Poder Judiciário das mãos do Poder Executivo absoluto.” Finalmente, do ponto de vista econômico, o liberalismo é o laissez faire, o laissez passer, princípio básico de uma escola para a qual as sociedades humanas são governadas por leis naturais, que nós não podemos alterar por mais que queiramos. Salienta então o orador que o mundo, no momento, estava dividido entre revolucionários – a extrema esquerda – e reacionários – a extrema direita – não havendo mais lugar para aqueles que pretendiam situar-se no centro, isto é, os liberais”. (Perfil Parlamentar de Gilberto Amado – Edição do Senado Federal, Brasília, 1979).

Nesse mesmo discurso está o veemente desabafo que não pôde conter: “Eu não sei, Sr. Presidente, se o regime capitalista, o regime dos liberais, dos burgueses patriotas, dos milionários, é o melhor. Repugna-me fazer a apologia de um regime que legitima a guerra, justifica a prostituição e deixa à porta dos palácios morrer de fome os miseráveis.”

Não foi muito longa a carreira política de Gilberto Amado. Após a Revolução de 1930, quando perdeu o mandato de senador por Sergipe, abandonou-a para sempre, considerando-se um decaído, um carcomido, como então se dizia dos integrantes da República Velha.

Há males que vêm para bem – lá diz o povo. Esse acontecimento amargo abriria as portas, mais tarde, para a “fase internacional” de sua vida, exercida na atividade diplomática, na qual se realizaria plenamente, ao lado do pensador e do escritor primoroso cuja obra encanta até hoje os seus leitores.

A “fase internacional” de Gilberto Amado ainda está por ser levantada, em especial sua atividade junto à Comissão de Direito Internacional da ONU, e também sua atuação como Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores, cargo em que sucedeu a Clóvis Beviláqua. E o homem que foi, em todas as lutas da existência, reclama até hoje o grande biógrafo que reconstitua com esmero e cuidado sua grande vida. As obras sobre ele existentes são parciais e incompletas.



(19 de agosto/2006)
CooJornal no 490


Enéas Athanázio,
escritor e Promotor da Justiça catarinense (aposentado)
e.atha@terra.com.br
Balneário Camboriú - SC