12/08/2006
Ano 10 - Número 489


 

ENÉAS ATHANÁZIO
ARQUIVO

 

Enéas Athanázio


 

UM HOMEM CHAMADO BRASIL

Visto por um homem do Sul

 

 

Embora criticado na época de seu lançamento como obra superficial e incompleta, “Câmara Cascudo – Um homem chamado Brasil”, de Gildson Oliveira (Brasília Jurídica – DF – 1999) contém 500 páginas de informações a respeito do mestre do folclore e da etnografia no Brasil e serve, quando mais não seja, como fonte de recapitulação para os que conhecem o tema ou de iniciação para os jejunos. Luís da Câmara Cascudo (1898/1986), em que pesem a importância de sua obra e a existência pontilhada de incidentes curiosos, não teve até hoje a biografia que merece, aquela que refaça em minúcias sua caminhada terrena e penetre fundo na sua obra, numa análise individual e de conjunto. Ele não teve até agora a sorte de encontrar um Edgard Cavalheiro ou um Ruy Castro, pesquisadores incansáveis que traçaram os perfis de figuras da maior relevância no panorama cultural. Os livros que existem sobre Cascudo abordam apenas aspectos de sua vida/obra, sem a pretensão de constituírem biografias nos moldes convencionais. Diante disso, pelo esforço na coleta de tantos e tão variados elementos informativos, o livro de Gildson Oliveira merece este comentário. Como diz o nosso povo, quem não tem cão caça com gato.
Gildson Oliveira é nascido no Rio Grande do Norte, portanto conterrâneo de Cascudo, formado em jornalismo e atuante na cidade do Recife, onde se radicou, e que, além de importante centro cultural, dispõe de uma das melhores imprensas do país. Apesar da diferença de idades, conviveu bastante com o escritor, entrevistando-o em sua residência e com ele conversando em diversas visitas, tomando o pulso daquele homem enciclopédico, como tal reconhecido, e ao mesmo tempo afável e humilde. Como se sabe, Cascudo foi dos poucos intelectuais de verdadeiro renome que permaneceu em sua Província, assim como fizeram Gilberto Freyre, no Recife, e Érico Veríssimo, em Porto Alegre, incentivando com suas presenças a vida cultural local. Essa recusa em deixar a cidade lhe valeu a alcunha de “provinciano incurável”, atribuída por Afrânio Peixoto, e que ele adotou gostosamente. Para a realização deste livro, Gildson leu milhares de páginas, enfiou o nariz em incontáveis livros, vasculhou publicações e papelada velha, entrevistou numerosas pessoas, visitou, indagou, perquiriu, viajou, venceu resistências. Obteve muitas fotografias, desenhos e ilustrações interessantes e que enriquecem o volume.

“Dom” Luís da Câmara Cascudo, como o tratavam os íntimos, nasceu (30 de dezembro de 1898) e faleceu (30 de julho de 1986), no mesmo bairro da Ribeira, na cidade de Natal. Ali viveu toda sua vida, grande parte dela no sobrado da Avenida Junqueira Aires, 377, hoje Avenida Câmara Cascudo, e que se tornou célebre, sendo até apontado como atração turística da capital potiguar. Filho de pai abastado, fazendeiro, comerciante e político, teve infância de menino rico, embora de saúde frágil, o que obrigou a família a viver por certo período no sertão do Seridó em busca de melhores ares para o garoto. Essa experiência, como todas as vividas por um escritor, resultou benéfica pelo que ele aprendeu, viu e mais tarde descreveu em suas obras. Foi um moço refinado, sempre vestido de forma impecável, usando palheta, bengala e flor na lapela. Desfilava pelas ruas fazendo pose em seu Ford de bigode e cativava as moças casadoiras com seus olhos verdes e seu constante bom humor, embora não fosse considerado um rapaz bonito. Estudou medicina na Bahia, até o quarto ano, voltando-se depois para o curso jurídico até bacharelar-se pela famosa Faculdade de Direito do Recife, em 1928. Nos anos em que residiu na capital pernambucana participou da boemia intelectual, então em grande fase, e conquistou amigos para a vida inteira. Era um notívago que amava caminhar à noite, conversando com amigos, bebendo umas e outras nos bares alegres e dançando onde houvesse oportunidade.

Retornando à cidade natal, teve que trabalhar. Em dificuldades financeiras causadas pelas suas excessivas prodigalidades, o pai não podia manter o nível de vida de outros tempos. Passou então a exercer o jornalismo e a lecionar em conhecido Colégio da cidade. Mais tarde passaria a lecionar na Faculdade de Direito da UFRN. Como as “disciplinas que dispunham de Códigos”, consideradas mais fáceis, foram logo ocupadas, sobrou para ele o Direito Internacional Público, matéria em que se aprofundou e sobre a qual ministrou aulas que eram autênticas conferências, jamais esquecidas por seus alunos. Além de dominar a matéria, tinha uma oratória vibrante, vasta erudição e grande simpatia pessoal, atraindo inclusive alunos de outras classes para ouvi-lo, fazendo pequena a sala onde exercia o magistério. Revelava de início especial interesse pela Historia, tudo indicando que seria mais um historiador. Aos poucos, porém, começou a observar as coisas do povo, seu modo de vida, sua fala, seus costumes, crenças, religiões, santos, relações entre as pessoas, ditos, cantigas, versos. Essa inclinação pelo popular prenunciava o nascimento do folclorista e do etnógrafo, inclinação aplaudida por Mário de Andrade em sua visita a Natal. Cascudo nessa época já aderira ao Movimento Modernista, influenciando outros intelectuais a engrossarem a corrente, como Ascenso Ferreira. No correr da carreira nas letras seria historiador, biógrafo, jurista, tradutor, memorialista, ensaísta, ficcionista, poeta bissexto, articulista, cronista, e, acima de tudo, folclorista e etnógrafo. Também foi aplicado missivista, daqueles que não deixavam bilhete sem resposta, e suas cartas contam-se aos milhares. Gostava de estar entre as pessoas do povo, tinha amor a elas, observando-as, ouvindo-as, absorvendo as coisas da sabedoria popular. Sentia-se à vontade nos mercados, nas feiras livres, nos festejos populares, nas cantorias e declamações de rua, nos botecos e pontos de aglomeração de gente humilde. Ali colhia, ao vivo, sem intermediários, os ensinamentos da cultura popular.

Seu livro de estréia apareceu em 1921 – “Alma Patrícia” – e, como obra lançada na província, obteve parca repercussão. Ele, porém, não se abalou, asseverando, para escândalo dos bairristas, que “Natal não consagra e nem desconsagra ninguém!” Numa época em que os intelectuais brasileiros consideravam a França sua segunda pátria intelectual, o livro revela um viés nacionalista e de amor à terra natal. Após a estréia silenciosa, sairiam de sua máquina 145 livros publicados, alguns em dois volumes e com numerosas páginas, além de 12 inéditos e milhares de artigos e crônicas espalhados em jornais e revistas e nunca reunidos em livros. Como disse alguém, foi “autor de uma obra amazônica” em que abordou a história de seu Estado e da cidade de Natal, diversas figuras destacadas por seus feitos e obras, aspectos do desenvolvimento nacional, excursões pelo sertão, poesia própria e de outros, temas jurídicos, peixes, vaqueiros, cantadores, nomes, lendas, fanáticos, mitos, contos, populares, festas, magia, literatura oral, jogos infantis, jangada e jangadeiros, comadres e compadres, superstições, rede de dormir, vizinhança, comida africana, coisas que o povo diz, nomes da terra, cachaça e outras bebidas, locuções tradicionais, tradição, religião, amuletos, adivinhações, civilização, cultura, universidade, história de vários municípios, costumes indígenas e, naturalmente, folclore e etnografia, além de numerosos outros temas. Avultam em sua obra o “Dicionário do Folclore Brasileiro”, “História da Alimentação no Brasil”, “Sociologia do Açúcar” e “Civilização e Cultura”, todos eles indispensáveis ao conhecimento do nosso país. Em 1973 foi publicada uma “Seleta”, organizada por Américo de Oliveira Costa, fornecendo uma idéia da vastidão de suas pesquisas. É interessante observar que, além da pesquisa in loco, ele afundava no estudo dos clássicos para lá encontrar, num passado às vezes milenar, as origens de nosso comportamento, nossos costumes e gestos, aprimorando para isso seu domínio de outros idiomas. Sua curiosidade pelas coisas do povo não tinha limites. “Ora, - escreveu – a mim interessa tudo o que é do povo, até o que ele faz no banheiro ou no mato.” Na incansável busca, chegou a traduzir Montaigne, quando este tratava dos canibais brasileiros, e outros autores, como Fábio Fiallo, Walt Whitman, e até livro sobre a mitologia indígena do Amazonas (inédito). Esses traços, tão longe encontrados, mostram que o folclore é, ao mesmo tempo, regional e universal. Teve obras publicadas em Portugal, Espanha e Cuba, sem falar nas traduções que apareceriam depois. Seu processo criativo era eminentemente mental: só depois de muito meditado o tema era datilografado, sem rascunho, emendas e erros.

Continuava com seus hábitos notívagos, trocando a noite pelo dia. Não raro o sol o surpreendia agarrado ao trabalho e isso o obrigava a dormir pela manhã, razão pela qual uma placa no pórtico de sua casa avisava: “O Professor Cascudo só recebe na parte da tarde.” Aos poucos, devagar e quieto, o reconhecimento foi chegando, vindo de todos os cantos, do Brasil e do Exterior. Chegavam convites para cargos, entidades, instituições, sempre recusados porque não desejava deixar sua cidade.

Fez viagens etnográficas à Europa, particularmente a Portugal, e à África, em busca de respostas. Essas andanças pelo mundo até hoje não se encontram bem documentadas; pouco se sabe a respeito delas. É um hiato em sua biografia. Na opinião de inúmeros intelectuais, brasileiros e estrangeiros, é simplesmente assombroso que um homem só, batucando sua máquina, numa cidade de província, sem grandes fontes informativas, realizasse uma obra tão vasta e que, em outro país, teria à sua disposição toda uma equipe. A correspondência explica em parte; muitas de suas cartas são verdadeiros questionários enviados a conhecidos, amigos e pesquisadores de perto e de longe. Foi “uma correspondência alucinante” – definiu alguém. Grande parte dessa correspondência continua arquivada, sem possibilidade de acesso ao leitor em geral, inclusive a que trocou com Monteiro Lobato. É curioso observar que nas “Cartas Escolhidas”, de Lobato, organizadas por Edgard Cavalheiro, não haja uma só dirigida a Cascudo.

Para ele, cultura popular é mais ampla que folclore. Seus conceitos de folclore (campo espiritual da sabedoria popular) e etnografia (campo material da mesma) eram muito claros. Repisar discussões teóricas em detrimento da pesquisa seria perda de tempo (p. 153). Desde o início uma preocupação norteava seus estudos – a identidade nacional. Quem é o brasileiro? – indagava, tentando obter uma resposta científica, acima das frases feitas e conceitos moldados. Nesse sentido, a escritora Maria Lúcia Amaral disse muito bem: “Ele contribuiu para preservar a nossa identidade, já tão conspurcada pelos americanismos, linguagens e costumes alienígenas” (p. 166). Para ele, o melhor do Brasil ainda é o brasileiro, frase que anda por aí em outras bocas, sem citação da autoria (p. 160).

Em sua bela e antiga morada da Ribeira havia uma romaria de amigos, leitores, admiradores. Muitos se tornaram habitués, outros compareciam a intervalos. Gilberto Freyre, Ascenso Ferreira, Joaquim Inojosa, Veríssimo de Melo e outros tantos registraram essas visitas. Políticos e funcionários de alto bordo, professores, alunos subiram aqueles degraus para conhecerem o mestre e ele a todos recebia com simpatia, em sua cadeira de balanço e saboreando um bom charuto. Eu próprio, em 1983, três anos antes de seu falecimento, tive o prazer de passar uma tarde em companhia dele e sua esposa, Dahlia. Ficou alegre com a visita e muito conversamos. Para ele, eu era “o mais meridional de seus correspondentes.” No Memorial Câmara Cascudo encontrei livros meus, todos assinalados, sinal de que ele os leu. Informou a diretora, sua neta, que existem cartas minhas nos arquivos. Ele chegou a escrever sobre meu livro “O Azul da Montanha.” O casarão da antiga Junqueira Aires, hoje Avenida Câmara Cascudo, está fechado e ainda contém boa parte de seu acervo. Mas o homem que o agitava e lhe dava vida está ausente. Queixam-se as pessoas do descaso das autoridades em dar à morada da mais ilustre figura da intelectualidade do Estado um destino digno e uma conservação adequada. Muita coisa, em pouco tempo, poderá se perder.

Grande parte do livro é destinada a depoimentos. Familiares, amigos, conhecidos, intelectuais, gente do povo, cada qual abordando um ou mais aspectos da vida/obra do folclorista. Surgem inúmeros casos, incidentes, lembranças e fatos, formando um conjunto admirável de informações. É geral a aclamação do pesquisador como homem e como intelectual. Apenas o poeta Ascendino Leite parece reticente, sugerindo suas palavras que Cascudo gastou o tempo em vão, cuidando dessas coisas do povo e confessa que não considera literatura o cordel, os casos transmitidos por via oral e outras manifestações do gênero. Autor de uma poesia elitista, desinteressada das causas do povo, sua posição não é de surpreender. Gilberto Freyre, apesar de algumas diferenças, reconhece e proclama o valor da obra cascudiana. Carlos Augusto Lyra se transformou em exímio conhecedor da obra e da vida do escritor e possui a maior coleção de livros, publicações, documentos, fotos e objetos sobre ele (p. 126). Muitos livros, teses, dissertações, ensaios, artigos, reportagens e documentários têm vindo à luz sobre ele, formando um conjunto expressivo. Cursos e seminários têm sido organizados.

No terreno das homenagens, inúmeras lhe têm sido prestadas, inclusive motivadas pelo centenário de nascimento (1998). Pela sua importância, avulta a criação do Memorial Câmara Cascudo, à praça André de Albuquerque, em Natal. Instalado em prédio histórico, restaurado, abriga parte do acervo do escritor, devendo em breve receber o restante, transformando-se em centro cultural e de estudos cascudianos sem similar. É dirigido pela neta Daliana, que vem dando o melhor de si a esse projeto. Diante do prédio encontra-se estátua em bronze do escritor, em tamanho natural, sobre uma mão espalmada, significando sua doação à cidade e ao país. A sugestão para a criação do museu partiu do jornalista Paulo Macedo e foi executada pelo arquiteto Sami-El Ali, que abriu mão de seus honorários. Existe ainda o Museu Câmara Cascudo, no bairro do Tirol, integrado à UFRN. Exceto o nome, nada tem com o escritor e seu horário é muito reduzido, dificultando a visitação. Mereceu ainda uma sessão solene da Câmara Federal, ocasião em que se manifestaram vários oradores. O Tribunal Superior do Trabalho (TST) lhe concedeu a “Medalha do Mérito Judiciário”, em homenagem póstuma. A Academia Brasileira de Letras (ABL) lhe dedicou uma sessão solene e a União Brasileira de Escritores (UBE) o elegeu Intelectual do Ano, conferindo-lhe o troféu Juca Pato. Joãosinho Trinta o homenageou no carnaval carioca em sua escola de samba. A Empresa de Correios e Telégrafos (ECT) emitiu um selo em homenagem ao escritor, com sua efígie. Ainda em vida, foi sagrado membro do “Clube dos Inocentes”, entidade que reúne a boemia intelectual, e a “Ordem da Castanha” o condecorou. Recebeu inúmeras condecorações, prêmios, medalhas e distinções, nacionais e estrangeiras. Em outras cidades surgiram bibliotecas públicas com seu nome. Cursos sobre sua obra são ministrados pela UFRN e em escolas de diversas cidades. A coleção de suas Obras Completas vem sendo reeditada pela Global Editora. A maior homenagem, porém, aquela que mais prezaria, vem do povo, das ruas, dos cantadores e violeiros. Todos os poetas populares conhecidos lhe dedicaram poemas, ABCs, louvações, desde Patativa do Assaré, Pedro Bandeira, Ivanildo Vila Nova, Dedé Monteiro, Oliveira de Panelas, Raimundo Santa Helena, Azulão, Rodolfo Coelho Cavalcante, sem faltarem meus velhos amigos Paulo Nunes Batista, Hildemar de Araújo Costa e Manoel Monteiro. Raros escritores, em país de poucos leitores, mereceram tais e tantas manifestações de carinho e consideração. Contrariando o dito popular, Cascudo é santo em sua terra e não alimento o temor de alguns de que seja esquecido.

É o livro de Gildson Oliveira, então, um retrato de corpo inteiro? Ainda não! Falta ao mestre de Natal uma biografia sistemática e analítica que desvende toda sua vida e obra, seguindo seus passos além-mar e fazendo uma interpretação de conjunto, à luz das teorias e da prática do folclore e da etnografia. Franklin Jorge é autor de um livro inédito que poderá trazer boas contribuições. Seja como for, o livro aqui comentado é boa fonte de informações variadas e confiáveis.

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Este artigo integra as homenagens a Câmara Cascudo no 20º aniversário de seu “encantamento”.



(12 de agosto/2006)
CooJornal no 489


Enéas Athanázio é escritor
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Florianópolis - SC