01/11/2019
Ano 22 - Número 1.147


 

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CARLOS TRIGUEIRO




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Carlos Trigueiro

NEGÓCIO NAS CAVERNAS -
FICÇAO DE VERDADE

 

 

Carlos Trigueiro - CooJornal

(Arrastado do meu livro inédito Pecados pronominais, escrito e engavetado em 2002)


Incrivel! Viajei no tempo. Estou no limiar do neolítico. Entre trogloditas? Aliás, eu mesmo pareco um deles! Putz! Pareço? Sinto-me integralmente troglodita. Nao sei nem posso explicar isso. A expressão "Só sei que nada sei me veio à memória do futuro. Quem dirá isso mesmo? Sim, será o ateniense Sócrates, professor de Platão e Xenofonte mais ou menos ali pelos 400 anos a.C.

Aproveitando a deixa do "Só sei.." do Sócrates: só sei que o meu olfato agora, no meio desses trogloditas, é aguçadissimo: conheço cada companheiro pelo seu cheiro particular, apesar de usarmos peles de outros animais que abatemos e que uma vez curtidas sob o sol, vento e luar, nos protegem do frio, pois vivemos praticamente pelados, ou melhor: nus ou seminus.

Nomes próprios entre nós, familiares, ou vizinhos de grutas ou cavernas são meras referências secundárias, talvez terciárias, porque somos apenas eu, tu, ele, ela, nós e eles, ou seja, mais um grupo da espécie hominídea da grande familia que crescerá, no tempo certo, a ferro e fogo, por toda parte, nas montanhas lá em cima e nas planícies cá embaixo do planeta Terra. Agora compreendo porque Gabriel Garcia Marquez registrou que nesse tempo muita coisa ainda nao tinha nome!

Mas a Terra é nossa! O céu se perde num encontro de azuis, e montanhas imensas vergam seus picos para saudar a marcha das florestas. Nascentes cristalinas nos saciam a sede devolvendo virgens as imagens lançadas sobre as águas. Cavernas recendem à vida e à morte, porque princípio e fim ainda não caíram nas armadilhas do eu enigmático, religioso e (mera especulação, digo, suposição) eterno. O instinto de sobrevivência canaliza nossas energias para o sentido telúrico da existência: sobreviver!

Esprememo-nos, dlgo, exprimimo-nos em linguagem rudimentar, mas não há ruído em nossa comunicação. A necessldade de transmltirmos uns aos outros os princípios de sobrevivência da espécle e do espécimen não permlte dissintonla entre slgnificados elementares e significantes grotescos. Tudo é simples na nossa condição de Homo Loquens começando a dominar o planeta. Diferenciamo-nos dos outros animais não só fisicamente, mas, sobretudo, graças à nossa capacidade para estabelecer relação de significação entre as coisas concretas ao redor e as abstratas que pensamos. Enfim, aprendemos a conviver com duas realidades distintas.

A mulher que me atrai está ali perto. Tem odor particularíssimo e uma inquirição no olhar que ainda não vi em outras fêmeas das cavernas da região. Com a minha potente memória química decodifico-a entre o bando de mulheres levadas a escambo nessa espécie de feira paleontológica. São filhas, netas, sobrinhas, mulheres feitas e desfeitas levadas a escambo por seus donos ou roubadas e arrastadas de vizinhos que habitam cavernas em grutas de montanhas próximas.

O escambo, leilão, troca, o que seja, transponho para o linguajar da era moderna mais ou menos assim:

- Quero levar aquela fêmea ali que parece muito curiosa e a perguntar tudo com os olhos!

- Hummm! Aquela ali vale mais do que as outras! Sabe ninar, sabe dar sossego, sabe abater uma ave pra comer e dar de comer e, bem, sabe roubar comida de outros bandos quando esfomeada.

- Pois dou por ela uma pele de bisão, um machado de pedra polida... e duas mulheres com barriga de sete luas.

- Hummm! Ela vale mais! De dia mata javalis a pedradas e pauladas, e, bem, de noite serve de boa montaria pro guerreiro cansado.

- Então ofereço uma pele de bisão, uma pele de urso, dois machados de pedra polida, um saco de gravetos para fogueira pequena no centro da comilança, e as duas mulheres com barriga de sete luas!

- Hummm! Ela vale mais! Tem pernas grossas, ancas largas, mamas boas de leite, cabelos longos e fortes como cordas, unhas e dentes afiados! Sabe também fazer fogueiras grandes que só apagam com o nascer do sol, e consegue falar ou se entender ao mesmo tempo com mais fêmeas que os dedos da minha mão vezes dois!

- Então, dou por ela uma canoa escavada em tronco de árvore, uma pele de bisão, duas peles de urso, dois machados de pedra polida e as duas mulheres com barriga de sete luas!

- Hummm! Ela vale mais, pois só pariu três vezes!

- Minha última e irrecusável oferta: dou uma canoa escavada em árvore, uma pele de bisão, duas peles de urso, dois machados de pedra polida, três dentes de dinossauro, dois dentes de mamute, as duas mulheres com barriga de sete luas e mais um cocar de penas de águias e falcões para proteção contra os maus espíritos e contra a morte sem aviso!

- Agora sim! Passe pra cá tudo isso que ofereceu, vou conferlr a paga nos sacos que carrega e, se estiver tudo em ordem aí dentro, você poderá levar essa fêmea especial que veio daquelas cavernas lá de clma, do topo das montanhas cobertas de neve...

Pois é. Se viajo no tempo para o outro lado, e alcanço o que chamaremos de "futuro", comentaria que "pós-darwinistas" se divertiriam ao aplicar conhecimentos de biogenética nesse ambiente que acabo de ver, ou sentir, ou perceber. Com certeza, constatariam que os organismos podem morrer no plano macro, mas que o processo vital continua ad infinintum no sentido micro, porque a vida é destinada à imortalidade, se mantida a ambiência natural.

Portanto, aqui, junto a essas cavernas, no limiar do neolítico, em meio à natureza luxuriante, a consciência cósmica do homem é expoente em todos os aspectos. Depois, viajando no tempo e encorpando o intelecto milênios à frente, o conhecimento científico e tecnológico cumulativos do homem conseguirão transformar os recursos naturais em riqueza material e pecuniária, afastando-o da sabedoria natural como a que acabo de presenciar nesse escambo pré-histórico. Mas, ainda acho que essa desintegração futura homem/cosmo crescerá na proporção inversa ao que os futuros intelectuais denominados economistas chamarao de "riqueza real". Porém, somente agora, após presenciar um escambo no tempo das cavernas, sou capaz de entender tal elucubração encrostada na minha memória do futuro.

A rigor, o pragmatismo que dominará os destinos do homem futuro - talvez uma espécie de imediatismo ou, melhor, visão de curto prazo da exlstência - tardará milênios para perverter a consciência cósmica do homem primitivo. Claro que o imediatismo chegará de vez, avassalador, encoberto pelas ondas dos turbilhões tecnológicos, alienatórios e lucrativos. Porém, tal imediatismo predará o meio ambiente do qual o homem do futuro negará fazer parte. E aí acontecerá a tragédia ambiental do porvlr: o habitat passará de mater a verdugo. E uma vez alterado o habitat natural do planeta, prodigiosa nolte estelar revlverá uma espécle de Gênesis cujo amanhecer terá consumido onze bilhões de anos.

A grande decepção aos olhos de Deus, dos deuses e semideuses (se persistirão em exlstir) é que a catástrofe planetária denominada Apocalipse, segundo os escribas e profetas, não ocorrerá por causa de fenômenos naturals astronômicos e galácticos, mas será antecipada por desvarios egocêntricos e furor materialista no turbilhão dos avanços tecnológicos já em profusão e desordem, ou seja: tudo elaborado exclusivamente no plano da intelligentsia, ganância e violência do Homem.





Texto extraído do livro "Arrastão de textos - Ficção de Verdades"


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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email
carlostrigueiro@globo.com

 


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ
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