01/10/2019
Ano 22 - Número 1.143

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CARLOS TRIGUEIRO

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Carlos Trigueiro


ERA UMA VEZ...

 

 

Carlos Trigueiro - CooJornal



(Texto arrastado do meu livro inédito engavetado Liberdades da merrória)



Era uma vez a princesa Maristela que nunca se olhava no espelho... Era uma vez um sapo cururu que só sabia pular para trás... Era uma vez a bruxa Coralina que perdeu a memória e não conseguia mais preparar poções mágicas nem venenos... Era uma vez um califa de nome Kaifaz que tinha cento e noventa e oito esposas...

Possivelmente, em todas as línguas, a expressão “Era uma vez...” é compreendida como o início clássico de uma história, senão infantil, senão juvenil, senão para todas as idades.

Um contador de histórias pode pegar essa centelha mágica da expressão “Era uma vez...” e transformá-la em espécie de cunha para abrir um caminho no rumo que quiser e na conveniência do ouvinte ou do leitor da vez. Caminho esse que pode ser trágico, filosófico, moralista, diabó1ico, cômico ou... da conveniência da vez...

E há mil e tantas maneiras de fazer isso, sem censuras nem fronteiras espaciais ou de crendices, porque o poder da imaginação é prodigioso, capaz de criar ou destruir deuses, mitos, mundos, personagens. De reinventar o tempo, fazê-lo andar pra frente ou pra trás sem qualquer cerimonial, bem como de iludir a memória e até mesmo ultrapassá-la, sobretudo se o contador de histórias conseguir recolher-se e ficar só consigo mesmo ou, talvez, com os seus fantasmas interiores.

É verdade que o processo criativo em qualquer arte exige inspiração, concentração, sobretudo recolhimento e foco específico durante as urdiduras da criação. Levando em consideração somente artes clássicas, e considerando o escritor como artista, acho que este precisa de maior recolhimento, talvez, do que o escultor, do que o pintor, do que o compositor (aqui, essa repetição da expressão "do que" é proposital e o leitor fará suas próprias inferências disso). Por quê?

Talvez porque tais artistas trabalham com matéria palpável: bloco de mármore, pedaço de madeira, bacia com argamassa, tela com esboços, paleta com tintas, cores, pincéis, matizes, ou, no caso dos músicos, com pautas alvitrando desejáveis sons, escalas, ritmos. Enfim, todos dependentes de matérias-primas que permanecem mais ou menos imutáveis, limitadas ou fixas, nos limites dimensionais do espaço e tempo no estúdio em que criam suas obras.

Nessas condições, digamos, quase imutáveis, o pintor, o escultor, o compositor podem vagar um tempo impreciso fora dos seus trabalhos criativos, interrompê-los aqui e ali, fazerem outra coisa qualquer (até mesmo atender a outro chamado inspirativo), mas sempre e quando desejarem podendo voltar ao ponto onde deixaram as suas obras para retomá-las sem grandes perdas, pois o bloco de mármore não sairá correndo porta afora, o cavalete do pintor não saltara de onde está, a pauta do compositor não emudecera os sons representados pelas notas musicais ali figuradas.

Mas o que sucede com o escritor, com o inventor de histórias? Bem, a matéria-prima das histórias é o lampejo incrível da imaginação. Isso mesmo: lampejo incrível! O contador de histórias trabalha com a fugacidade dos pensamentos, está sempre correndo atrás deles, nunca ao lado nem na frente, mas entre o céu e o inferno da imaginação.

Por isso, o escritor precisa registrar imediatamente (seja lá como for e consiga) no papel ou na pedra, ou na areia, ou na tela de qualquer geringonça tecnológica, ou no tronco da arvore, ou no lenço, ou na toalha ou guardanapo do restaurante, ou na fronha do travesseiro, ou na colcha da cama, ou na própria roupa que veste, ou no livro que lê, ou na borda da tatuagem corporal, ou no bloco de notas que inventa ou aparece por encanto. Enfim, insisto, o escritor necessita guardar uma ideia, um jogo de palavras, uma trama, um drama, o piscar inquiridor de um personagem, os apetrechos, maiores, menores e pormenores de um cenário - porque tais fantasias só existem vagando no universo particular de suas fabulações e podem se dispersar tão rapidamente quanto surgiram, esfumando-se diabolicamente para nunca mais voltar

Transpondo esses argumentos ao correr da pena para a literatura maiúscula de Jorge Luis Borges, o grande escritor argentino, talvez por constatar a fugacidade da criação literária, ele construiu contos onde fantasmas habitam losangos, bibliotecas ou labirintos, mas vivem e sofrem apenas de palavras, palavras, palavras. Na mesma linha de ideias, vamos
encontrar na monumental obra de Ernesto Sabato: “Ambígua e angustiada, a alma sofre entre a carne e a razão, dominada pelas paixões do corpo mortal e aspirando a eternidade do espírito, perpetuamente vacilante entre o relativo e o absoluto, entre a corrupção e a imortalidade, entre o diabólico e o divino. A arte e a poesia surgem dessa confusa região e graças a essa mesma confusão: um deus não escreve romances".

Enfim... Era uma vez um arrastão de textos com ficção de verdade...






Texto extraído do livro "Arrastão de textos - Ficção de Verdades"


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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email
carlostrigueiro@globo.com

 


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ
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