16/05/2019
Ano 22 - Número 1.125

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CARLOS TRIGUEIRO

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Carlos Trigueiro


CONVERSA DE AMIGOS EM FUNERAL -

FICÇÃO DE VERDADE

Carlos Trigueiro - CooJornal



Texto arrastado do livro inédito e engavetado Funeral das elites



- Você por aqui! Executivo de financeira internacional num funeral home de terceiro mundo?

- Bem, apesar de não nos vermos havia séculos, eu ainda o considerava meu amigo... acho que li ou assisti todas as peças que escreveu, roteirizou, representou... Ele era muito bom como dramaturgo... coitado, agora, foi-se deste mundo, pobre Constantino!

- E nós dois, quando nos vimos pela última vez?

- Última vez? Espera aí. Não nos vimos pessoalmente: foi num aplicativo pela telinha do celular... Você desligou de repente dizendo que retornava em cinco minutos, porque um aplicativo mais moderno mudara repentinamente a tela e.... Mas isso foi há quarenta e um dias...

- Não diga isso! A vida pós-moderna moldada pela tecnologia eliminadora de tempo, distância, verdade, ilusão, ótica, moral, sonho e o escambau... Parêntese: nós mineiros, conservadores, ainda usamos essa expressão “e o escambau" lá em casa! Mas como ia dizendo, esse monstro apelidado de "Tecnologia” nos absorve totalmente, desculpa a minha indelicadeza, vivo assoberbado com as traduções para as editoras, aliás, vivo disso, você sabe...

- Valeu!

- Ainda bem que a mãe Natureza é sabia e não morremos todos ao mesmo tempo!

- Verdade mesmo... Pois da morte não temos saída!

- A vida é que só tem uma saída: a porra da Morte! Enquanto isso a Morte tem várias saídas: putrefação, embalsamento, cremação, enterro, missa de sétimo dia. aviso religioso nos jornais, e claro, dependendo do que o defunto aprontou em vida: o céu, o inferno, o purgatório, a reencarnação...

- Falando em saída, você sabe que destino a família vai dar ao defunto, digo, ao nosso amigo defunto?

- Acho que vai para um tumulo familiar. Há melhor destino para os mortos?

- Formulei mal a pergunta... É que hoje em dia há tanta burocracia com os mortos...

- Bem, fiquei sabendo que a família, digo, as famílias... pois ele casou várias vezes. Bem, ainda estão resolvendo o Seguro-Funeral. Talvez precisem fazer exumação de algum defunto precedente que ainda não completou o tempo mínimo necessário no mundo dos mortos e enterrados... coisas tipo assim!

- Nós sabemos que ele era um “galinha" tremendo, não dispensava as mulheres dos amigos, nem a babá, nem a faxineira, nem a diarista, nem a vizinha, nem a cozinheira... E sabemos que o primeiro casamento dele acabou porque a Mônica, a primeira mulher dele, flagrou o cara dando receitas eróticas, in natura, à cozinheira...

- Ele tinha muitas histórias... Lembro que no nosso tempo de adolescente mais pra adulto do que pra menino, já ensaiando as suas primeiras peças, a turma toda do teatro comentava que ele era louco por freiras, mas freiras autênticas - à moda antiga - que vestiam hábito comprido e usavam aqueles véus caídos... Vai ver que ele associava os trajes das freiras à magia das cortinas e camarins do teatro! Todo dramaturgo nasce sonhador, do contrário não imaginaria as peças! Não à toa, o dramaturgo espanhol Pedro Calderón de la Barca... falou, disse, escreveu e representou: "A vida é sonho”

- E diziam também que quando mais novo, claro, ele tinha uma amante pra cada dia da semana, e, talvez por isso, também diziam que adorava mulheres de classe inferior à dele: trepava caixeiras, balconistas, feirantes, empregadas domésticas, agricultoras-sem-terra, trocadoras de ônibus, e por aí...

- Mas ele não estava errado não! Acho que cada um tem que aproveitar ao máximo suas preferencias sociossexuais durante a vida, porque tudo o que fomos e fizemos, ou melhor dizendo, todas as que trepamos... sem querer dar uma de machista... Bem, enfim, o que quero dizer e que tudo acaba nisso aí em frente: defunto!

- Mas li num artigo sobre o nosso amigo, já faz algum tempo, não me lembro onde li isso, bem, diziam que ele era xerófago!

- Porra! Isso é alguma doença?

- Não, não... xerófago é quem só come frutos e alimentos secos!

- Que coisa mais extravagante! Vai ver que por isso o nosso amigo defunto enxergava toda mulher como fruta da vez! Foi melhor pra ele cruzar logo a fronteira, pois o atual e legítimo reconhecimento de que homem e mulher têm direitos e deveres iguais ia metê-lo na cadeia!


Texto extraído do livro "Arrastão de textos"


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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email
carlostrigueiro@globo.com

 


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ
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