01/05/2019
Ano 22 - Número 1.123

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CARLOS TRIGUEIRO

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Carlos Trigueiro


A IDADE DA SABEDORIA

Carlos Trigueiro - CooJornal



Texto arrastado do livro inédito e engavetado Liberdades da memória



Vivi um tempo no Oriente. Ali, a reverência natural aos mais velhos faz parte da cultura milenar. No meu pragmatismo ocidental, sem presunção antropológica ou burocrática, interpretava o costume como honroso reconhecimento à experiência de vida acumulada.

Não à toa, a vida na caserna, em qualquer quadrante terreno, constitui repositório dos segredos e artes milenares da guerra - desfecho das mais antigas e organizadas manifestações da condição humana e, por isso, diz o jargão que “antiguidade é posto”.

Quando retornei aos quadrantes ocidentais, tive muitas oportunidades de refletir sobre as tentativas epistemológicas para saber explicar a sabedoria da experiência, porém jamais pude imaginar que encontraria as melhores respostas aos meus questionamentos no próprio âmbito familiar.

Sim, tenho por hábito e carinho, visitar minha mãe nonagenária, quase centenária. Não é nem de longe pessoa comum. Vive só, faz, lava e passa o que veste, cozinha a sua comida, limpa o que acha que deve ser limpo em seu pequeno apartamento deixado por meu falecido pai. Pedala máquina de costura possivelmente da sua idade. Dorme cedo. Desperta quando lhe apraz. Fala ao telefone com alguns poucos de seus conhecidos contemporâneos, e com filhos, netos, sobrinhos. Não tem irmãos sobreviventes. Não raro vai a pé, ali por perto, comprar o que necessita nas quitandas do subúrbio onde vive, ou nos raros armazéns ou bodegas que resistiram às investidas dos supermercados.

Se algum dos filhos lhe diz que na sua idade é conveniente (e até imprescindível) manter uma acompanhante ou empregada fixa, principalmente à noite, rejeita a ideia e muda de assunto fingindo surdez maior do que a perda comum à sua idade. Para distrair-se, folheia revistas antigas e cativaram no tempo certo a sua atenção e, às vezes, algum jornal mais ou menos atualizado que compra na banca mais próxima. Ouve rádio à moda antiga: noticiários, previsão do tempo, horóscopo, música popular ou sertaneja. Raramente liga a televisão. Tem suas próprias crenças e descrenças, pois mantém no quarto de dormir antigo móvel tipo santuário com imagens pra lá de antigas, santinhos com orações no verso e imagens trazidas de templos visitados faz tempo. Crê em Deus ao seu modo e reza antigas orações.

Nas paredes da pequena sala, coleciona em painéis desprovidos de requintes simétricos, dezenas, aliás, centenas de fotografias em preto e branco ou coloridas, dos familiares de várias gerações a testemunhar fases distintas da sua vida.

Na parte do miúdo apartamento que chama de área de serviço e é contígua à pequena cozinha, distribui em prateleiras seus remédios caseiros: cascas de laranja da terra, cipó tuíra, sementes de mururé que o seu pai colocava no copinho de cachaça artesanal “pra matar os bichos lá por dentro, inclusive reumatismo” antes ou depois das refeições, e também pó de guaraná ralado em língua de pirarucu seca, sementes de sucupira e coisas do gênero.

Mas um dos seus mais surpreendentes comportamentos de que me lembro foi numa de minhas visitas enquanto conversávamos sobre um pouco de tudo, inclusive religião. Nascida e criada sob a cultura do catolicismo, perguntei-lhe se ainda ia a alguma igreja ali por perto.

Respondeu-me que ia poucas vezes à igreja e só ali entrava “quando não havia Padre”. Diante da singularidade da resposta insisti: "Mas por que não entra na igreja quando tem Padre?". Ela respondeu-me do alto da idade da sabedoria: "Padres falam muita besteira!"



Texto extraído do livro "Arrastão de textos"


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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email
carlostrigueiro@globo.com

 


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ
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