16/03/2019
Ano 22 - Número 1.117

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CARLOS TRIGUEIRO

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Carlos Trigueiro


CONSULTÓRIO DE PSICANALISTA FAMOSO — FICÇÃO DE VERDADE


Carlos Trigueiro - CooJornal


(Texto arrastado do meu livro inédito Liberdades da memória)


Doutor Sinfrônio (iniciando a consulta com um tablete à frente): Boa tarde, Sr. Limaverde, temos nos dedicado no ultimo mês a temas pontuais como "Datas”, “Estudos”, "Estímulos”, "Manias”, etc. Na sessão... digo, consulta de hoje, vamos nos dedicar ao tema "Sonhos”. Claro que todo mundo sonha, é da natureza humana, e está provado que até alguns animais irracionais sonham também. O senhor tem sonhado ultimamente com algo interessante ou que o impressionou?

Paciente - Sr. Limaverde (respondendo na bucha): Mas e claro que sonho e... bem, sonho bastante. Aliás, exatamente ontem, quando acordei fui anotar no meu diário, pois tive um sonho maravilhoso!

Doutor Sinfrônio (entusiasmado): Otimo! Então, vamos lá, descreva esse sonho maravilhoso que mereceu registro no seu diário. E, por minha vez, anotarei na sua ficha o que me parecer adequado para registro, impressão e reexame no futuro.

Paciente – Sr. Limaverde (desconfiado, mas, deixa pra lá...): Sonhei que estava saindo de casa, e deparava com as calçadas limpas, as ruas lisinhas sem buracos, as árvores podadas, uma beleza!

Doutor Sinfrônio (entusiasmado): Continue!

Paciente – Sr. Limaverde (mais a vontade): Continuei andando no sonho pela rua e reparei que havia chovido à noite, mas os bueiros estavam desentupidos e não havia poças de água; vi que os sinais de trânsito, bem, os semáforos estavam funcionando e eram respeitados por pedestres e motoristas que esperavam a sua vez; reparei que os motoqueiros andavam em fila atrás dos carros e não entre os veículos; vi também que os ciclistas trafegavam na mão correta e não subiam as calçadas nem mudavam de mão; sonhei que nesse passeio ou saída de casa, os policiais cumprimentavam as pessoas antes de abordá-las por alguma falta, mas não lhes pediam dinheiro para evitar multas; não havia bandidos nas esquinas, nem tiros nem balas perdidas, nem assaltantes trafegando em bicicletas e motos para roubar cordões, relógios e celulares de pessoas que digitam e fazem selfies por toda parte; sonhei que ninguém pegava o celular para falar ou digitar atravessando a rua; também reparei que nenhum motorista de ônibus ou em carro particular estava digitando no celular ou mesmo falando enquanto dirigiam; passei pela frente de três ou quatro agências bancárias e os terminais eletrônicos não estavam com chupa-cabra e não tinham sido vitimas de hackers, vandalizados ou explodidos durante a noite e tem mais, no sonho, os passageiros esperavam os ônibus em fila nas paradas sob marquises e as pessoas se ajudavam umas às outras na hora de entrar enquanto o motorista cuidava só de dirigir, pois em vez de leitores eletrônicos de cartões de passagens, havia cobradores profissionais no assento e lugar apropriados, recebendo o valor das passagens e dando o troco aos passageiros... e, por incrível que pareça, os cobradores mostravam boa vontade aos passageiros e indicavam os lugares disponíveis; também reparei no sonho que os carteiros dos serviços de correios entregavam educadamente as correspondências para os porteiros dos edifícios que, com uniformes limpos, assinavam documentos para as cartas registradas; e, no final da rua, quase no fim do sonho, os táxis paravam no lugar apropriado da calçada e os passageiros saltavam exclusivamente pelo lado do meio-fio e não pelo lado do meio da rua... e...

Doutor Sinfrônio (sério e anotando alguma coisa): Um momento só, Sr. Limaverde, dava para perceber que lugar, digo, que cidade era essa do seu sonho?

Paciente - Sr. Limaverde (meio sem graça): Bem, doutor, repare que quando comecei a falar sobre o sonho, disse que estava saindo de casa, e, claro, minha casa é aqui no Rio de Janeiro, no bairro de Botafogo, aliás, bem perto do seu consultório...

Doutor Sinfrônio (mais sério ainda e anotando numa ficha eletrônica): Bem, pelo que ouvi, vamos parar por aqui. Estou preenchendo uma receita de remédios controlados, vou dobrar a dosagem da sua medicação e triplicar o número de vezes para tomar durante o dia bem como antes de deitar para dormir, pois concluí que o senhor não teve um sonho, mas sim um surto psicótico, um delírio pra lá de extravagante e isso me preocupou. Não precisa pagar a consulta de hoje, porque os remédios são caros, e vamos nos ver na próxima quinta-feira as 16 horas. Boa tarde, bom sono de verdade, e bons sonhos, mas sem delírios... nem surtos...


Texto arrastado do livro "ARRASTÃO DE TEXTOS - Ficção de Verdade(s)",
publicado pela 7Letras Editora/RJ




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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email
carlostrigueiro@globo.com

 


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ
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