01/05/2017
Ano 20 - Número 1.027

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CARLOS TRIGUEIRO

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Carlos Trigueiro



O óbito do dramaturgo em 8 ½ dimensões

Carlos Trigueiro - CooJornal



(8ª ½ Dimensão)

APLICATIVO DO SEGURO SAÚDE (EM VIVA VOZ): Alô! Aqui fala o seu fiel representante do Seguro-Saúde “JUNTOS PARA SEMPRE!”

ISADORA (desolada): Até que enfim! Eu queria saber da segunda ambulância que vinha para cá, pelo amor de Deus, é mais do que urgente…

APLICATIVO DO SEGURO SAÚDE: A segunda ambulância também foi assaltada minha senhora, infelizmente é assim a vida no Rio de Janeiro de hoje, mas a terceira ambulância já saiu da segunda garagem reserva, está escoltada por atiradores de elite contratados a uma firma de segurança, e, segundo nosso controle via satélite, a viatura já está chegando aí na esquina da sua rua, praticamente na portaria do seu edifício...

DEFUNTO (Elucubrando): Presunção ou não, traio meu status de defunto! Pulsava forte a paixão política na hora do meu desenlace. Nesses primeiros momentos de finado, não foi possível me desvincular totalmente das ossaturas dos vivos, ou ainda não aprendi a estar morto em plenitude. Nem me desfiz das raízes do teatro, embora tenha saído de cena antecipadamente porque a minha agenda dos neurônios me enganou...
Mas não pretendo passar por autor-defunto nem por defunto-autor como na dicotomia machadiana do Brás Cubas. Pelo que começo a entender, sou defunto dramaturgo ensaiando pena, talvez meu devenir. Sinto que o labirinto dos mortos encerra muitos aprendizados. Tateio aqui, ali vislumbro, lá transpasso. Ainda não controlo minha condição de sujeito extinto, de alguém que apagou, mas o teatro que em mim ardia está clamando por ação! Lamentável ter que interromper a minha peça – estava tudo preparado para a encenação!
Que pena! Resta-me contemplar fontes de indignação: vis cenários reais do meu país. Essas longas estradas margeadas por propriedades imensas e improdutivas ao deus-dará, enquanto gerações de famílias sem-terra, de boias-frias com terçados cegos apodrecem no aguardo de reforma agrária mil vezes ensaiada, mas que nunca há de estrear! Se já estou no mundo dos mortos, o que de fato daí percebem, ó vultos iluminados de outros tempos?

CAMPAINHA DO APARTAMENTO: (Soando!)

ISADORA (Nervosa e em prantos): Filhos, por favor, depressa, abram a porta, deve ser a equipe do Seguro-Saúde para atestar... o óbito... do Celso Rodrigo.

EQUIPE DO SEGURO SAÚDE (Médico legista entrando e falando com autoridade): “Boa Noite a todos! Já estamos constatando a imagem enviada pelo celular e vendo que o paciente continua caído no mesmo lugar do chão, em cima de um tapete. Agora, por favor, além da nossa equipe, peço que só fiquem próximos aos exames e testes – procedimentos de praxe que faremos imediatamente – apenas dois familiares maiores de idade. Aliás, de preferência, um dos familiares, se tiver condições emocionais, seria melhor que fosse a esposa do paciente, Dona Isadora, que nos acionou por celular. O outro familiar que servirá de testemunha aos procedimentos que faremos poderá ser um dos filhos mais velhos. Todos os procedimentos são efetuados aqui mesmo no próprio local onde o paciente está caído.”.
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QUINZE MINUTOS DEPOIS (Fala do Médico legista após equipe examinar Celso Rodrigo e realizar os procedimentos de praxe): “Senhora Isadora, moças, rapazes, temos uma notícia sensacional e bombástica, mas controlem suas emoções tanto quanto puderem para não provocarem sustos desnecessários! O dramaturgo Celso Rodrigo está vivo! Estamos diante de um caso raríssimo na Medicina!”.
CÔRO FAMILIAR (Uníssono e assombrado): O que? Vivo? Deus é grande!

MÉDICO LEGISTA (Falando pausadamente e sem conseguir esconder alguma emoção): Calma a todos! Até o momento, tudo nos leva a crer que o paciente entrou num estado de catalepsia patológica causada por algum motivo para nós ainda desconhecido. Talvez em reação motivada por algum ataque raro epiléptico, ou mesmo por ter sofrido um inesperado surto esquizofrênico! Mas de nada adianta especular isso agora, temos é que, urgentemente, dar prosseguimento às medidas de salvamento da vida do paciente.
Vou resumir a situação para que não fiquem com esses olhos esbugalhados e se acalmem e se amparem dentro do possível. Assim que começamos o exame o paciente estava com os músculos rígidos, sem pulso, sem respiração, sem ritmo cardíaco e com os olhos abertos, mas insensíveis aos testes de luz. Porém, por incrível que possa parecer, oito minutos e meio depois, exatamente, o seu pulso e a sua respiração voltaram vagamente, e, claro, o ritmo cardíaco também se restabeleceu ainda muito fraco, embora, no momento, já esteja mais regular, e, por último, seus olhos reagiram sensivelmente aos testes de luz. Enfim, Celso Rodrigo está vivo! E também, por incrível que pareça, notamos que esse cãozinho aí da casa, infiltrado entre as pernas de um dos enfermeiros próximo ao paciente começou a abanar o rabicho, como se pressentisse ou ouvisse que o coração dele voltava a pulsar!
Agora, nós vamos levá-lo com urgência, sob máximo cuidado, inclusive colocamos-lhe uma provisória máscara de oxigênio até chegarmos à Casa de Saúde aqui próxima, participante da rede de atendimento do Plano “JUNTOS PARA SEMPRE”, e que dispõe de Centro de Tratamento Intensivo adequado a este raríssimo caso. Precisaremos, de novo, que dois familiares se juntem à nossa equipe para acompanhamento e testemunho dos procedimentos que o caso vai requerer.
E Dona Isadora, afirmo que sua insistência foi fundamental para salvar a vida do seu marido, pois a Medicina ainda não tem domínio sobre esses casos raríssimos que tanto podem durar minutos, horas, e até mesmo dias. Parece que a senhora não estava acreditando que ele estivesse mesmo falecido...
E para finalizar, soubemos por aplicativo especial que a Polícia já prendeu a quadrilha que assaltou as nossas duas ambulâncias que para aqui se encaminhavam antes da nossa, e também que já encontrou e libertou nossas equipes sequestradas! Agora, Boa Noite!

CORO FAMILIAR (Com toda emoção): Muito Obrigado por tudo –– PAPAI ESTÁ VIVO!

PIRANDELLO (VULTO FALANDO, OU SABE-SE LÁ): “ESTA NOITE SE REPRESENTA DE IMPROVISO”.

CALDERON DE LA BARCA (Vulto falando, ou sabe-se lá): “A VIDA É SONHO.”.

E CAI O PANO




Extraído do livro "HISTÓRIAS TIPO ASSIM: WHATS-au-au-APP",
selo IMPRIMATUR, Ed. 7Letras.

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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email
carlostrigueiro@globo.com


(1º de maio/2017)
CooJornal nº 1.027


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (2000), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ
contato@carlostrigueiro.art.br
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