01/10/2015
Ano 19 - Número 954

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CARLOS TRIGUEIRO

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Carlos Trigueiro



“WHATS au-au-au APP”

Carlos Trigueiro - CooJornal


“Em tempos pós-modernos quando a tecnologia dita, reverbera, subverte padrões, regras e comportamentos socioculturais sem limitações de tempo, velocidade, distância e lugar, vale a pena incorporar às reflexões do nosso dia a dia a profética frase do escritor e poeta lusitano José Gomes Ferreira (*1900/+1985): ‘É proibida a entrada a quem não anda espantado de existir’.”

“De fato, hoje, o espanto de existir pode dar-se em toda parte e a qualquer tempo. Seja no frenesi do ir e vir a pé nas ruas seja em veículos de todo tipo e dimensão, sobre trilhos, asfalto, paralelepípedo, macadame, cimento e buracos, transportando pessoas em skates, patins, bicicletas, triciclos, motos, automóveis, caminhões, ônibus, carroças, alheias ao mundo em volta, a digitar mensagens em celulares, smartphones, tablets e similares, e a expedir fotos, filmes, vídeos sobre si mesmos ou referentes a acontecimentos que a TV divulgará via internet.”

“Do jeito que vão as coisas, nosso espanto de existir qualquer dia vai se deparar com circunstâncias até bem pouco inacreditáveis. Basta olhar em torno, por exemplo, e constatar a evolução de status dos pets. Mormente os cães –– que de fiéis companheiros do homem –– passaram a ‘cãopanheiros’ com direito a afiliação em partido político, frequentar cinema, igreja, shopping, hotel, motel, restaurantes especiais, sem falar no luxo de refeições sofisticadas, banhos e cremes especiais, tosas ditas mágicas, saunas, clínicas médicas e fisioterápicas, clubes de ginástica, conduzidos pelos próprios donos ou por cuidadores e passeadores contratados, hábeis no manejo de coleiras, ordens, palavreado e coleta de dejetos de tais privilegiados...”.

“Neurocientistas e outros especialistas afirmam que estamos ‘falando pelos dedos’ e a expansão tecnológica das comunicações é tão vertiginosa que aplicativos e microchips em celulares de uso por seres humanos estão em vias de adaptação para cães amestrados. Daí leitor, não ande espantado de existir! Ande, sim, espantado de coexistir com situações como as que outro dia me deparei na orla da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, e que descrevo nos parágrafos abaixo.”

“Pois bem, numa pracinha frequentada por crianças, bebês, babás, pais novos e velhos, naturais ou não, tios, avós e parentada não especificada no Código Civil, um espaço quadrilátero era destinado aos cães, digo pets, claro que de várias raças... De repente, um yorkshire adulto de seus oito anos, nomeado ‘Peteleco’ botou as patas dianteiras sobre o tablet que a sua jovem dona, Clarice, deixara sob o banco da praça, momentaneamente, ao afastar-se para tomar água de coco na barraquinha próxima. Tão logo se viu à vontade, ‘Peteleco’ começou a digitar, digo patear, graciosa e rapidamente, no teclado da tela do tablet.”

“De imediato se aproximaram dois yorkshires, um akita, um golden retriever e um chow-chow (temperamental como é próprio da raça), nas respectivas coleiras e conduzidos por seus donos ou por passeadores profissionais, para admirar a destreza com que ‘Peteleco’ agia sobre a tela do tablet. Outros pets foram se chegando até formarem rodinha típica de curiosos”.

“Na altura deste sétimo parágrafo, Clarice voltou. Sugava por um canudinho a água fresquinha do coco que acabara de comprar. Afastou dois passeadores que fechavam a rodinha de curiosos e não fez caso do temperamental chow-chow que não gostou daquela súbita movimentação e rosnou emburrado. De repente, todos (inclusive os ainda tidos como irracionais) ouviram espantados, Clarice gritar: ‘Meu Deus! Peteleco, pare imediatamente com isso! Eu já te disse um milhão de vezes que o microchip desse Whats au-au-au APP que coloquei na tua orelha é ex-pe-ri-men-tal e ainda está em fase de testes na Dinamarca! Todos os textos aí gravados são de especialistas em tecnologia da comunicação para o futuro!”.

“E dando razão ao professor de história da cultura, Thomas Pettit, na Universidade do Sul da Dinamarca, ao dizer ‘que estamos caminhando para um futuro pós-imprensa e que alguém pode receber uma mensagem escrita tão rapidamente como se estivesse falando ao vivo com a pessoa –– em suma, como se estivéssemos ‘falando pelos dedos’, tratei logo de assinar esta crônica antes que Clarice retirasse o aplicativo Whats au-au-au APP da minha orelha e retomasse o seu tablet sob minhas patas. Portanto, leitores deste mundo pós-moderno não andem espantados de existir! Até a vista, ou melhor, Tchau-au-au! Assinado, Peteleco.”


Crônica publicada anteriormente no ‘CARTA CAMPINAS’

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Comentários sobre o texto podem ser encaminhados ao autor, no email
carlostrigueiro@globo.com


(1º de outubro/2015)
CooJornal nº 954


Carlos Trigueiro é escritor e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (200ó), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil). RJ

www.carlostrigueiro.com



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