Foi a escritora Cida Sepúlveda, minha amiga de longa data,
quem me apresentou Carlos Trigueiro. "É um cara fantástico!" — disse-me ela.
— "Que pena a imprensa lhe dar pouco espaço". Conseguindo na Internet os
dados biográficos desse autor, fiquei um tanto desconfiado. "Estudou
Administração Pública na Fundação Getúlio Vargas... trabalhou no Banco do
Brasil... fez uma pós-graduação em Disciplinas Bancárias na Universidade de
Roma... abordou diversos temas socioeconômicos em seus artigos...". E daí,
perguntei a mim mesmo, o que é que esse currículo tradicional de um
economista tem de tão extraordinário assim? Comecei a folhear o romance
Libido aos pedaços, recém-lançado pela Editora Record, e minha opinião sobre
Carlos Trigueiro mudou, quase de imediato, da água para o vinho. À medida
que lia sua prosa arguta, inteligente, bem persuasiva na captura dos mais
finos matizes da psique humana e, ainda por cima, escrita naquele belo
português dos tempos clássicos que hoje em dia parece invulgar, se não
exótico, surgia-me vez por outra a impressão de que realmente o santo de
casa não faz milagres. Cheguei a comprovar tal hipótese ao conhecer as
demais obras de Carlos Trigueiro e, sobretudo, ao travar uma conversa
amigável com ele próprio, esse homem sábio, irônico, instruído ou, quem sabe,
desiludido pela sua vida em que duas atividades antagônicas, a economia e a
literatura, formam um arabesco singular e harmonioso. Acho que está na hora
de compartilhar com nossos leitores o essencial dessa longa conversa. [Oleg
Almeida]
Oleg Almeida – Logo de início farei a minha pergunta costumeira e mesmo um
pouco batida. Quando você resolveu ser escritor, ou melhor, com que idade é
que se interessou pela literatura? O que queria saber é se foi algo
espontâneo — digamos, um sonho ainda infantil que se realizou — ou uma
escolha consciente, amadurecida.
Carlos Trigueiro – Perfilho a opinião daqueles que dizem que o indivíduo já
nasce músico, ou pintor, ou poeta, ou ator, ou escritor, etc. Porém, se a
arte que nasce com o indivíduo e nele evolui e se expande, e se refina, e se
concretiza num patamar fora do comum, é outra história: depende de muitos
fatores. No meu caso nada extraordinário: tive uma infância livre e rica em
variedades de experiências, desde o contato com a natureza exuberante da
floresta e dos rios amazônicos às brincadeiras com outros molecotes da mesma
idade pelos areais, ondas e dunas das praias cearenses. Tais encontros
somados à impressão que me causavam os respectivos costumes regionais (dos
caboclos e suas canoas nos igarapés do Amazonas, e dos pescadores,
jangadeiros e suas jangadas nos mares e praias do Ceará, além de sentir de
perto a vida no agreste e no sertão, origens dos meus ancestrais maternos e
paternos) cedo despertaram minha curiosidade para registrar cenários,
paisagens, costumes e aventuras. Acho que comecei a escrever espontaneamente
ainda menino, "de" e "na" memória (tanto assim que o meu primeiro livro foi
Memórias da Liberdade), talvez porque eu não tinha máquina de escrever, ou
fotográfica ou filmadora, para registrar aquelas vivências e emoções.
Bastava abrir os olhos e o coração para o mundo ao redor e percorrê-lo de
peito aberto, sem histórico, medos nem compromissos, tal como no poema Meus
oito anos de Casimiro de Abreu: com "pés descalços, braços nus, correndo
pelas campinas, a roda das cachoeiras, atrás das asas ligeiras, das
borboletas azuis". Enfim, na linguagem dos poetas, tornar-me escritor foi
metade sonho da consciência, metade consciência do sonho.
OA – Segundo a sua biografia, um dos primeiros livros que contribuíram para
sua vocação vir à tona foi Tom Sawyer de Mark Twain. É curioso: quando
garoto, eu também gostava desse livro... Você poderia citar outras obras que
o influenciaram, de alguma forma, no começo de sua carreira literária? Não
me refiro aos autores que lia então, mas precisamente às obras que foram
importantes para a sua aprendizagem.
CT – O livro As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, publicado em 1876 e
lido por mim 77 anos depois, em 1953, em Fortaleza / Ceará, quando o ganhei
como prêmio escolar, foi a pedra angular dos meus devaneios literários.
Muito do livro tinha a ver com o que eu mesmo vivera e vivia, familiarmente,
próximo à exuberância dos rios (Amazonas, Negro, Tapajós, principalmente) e
florestas (Estados do Amazonas e Pará) nos meus primeiros oito anos de
existência. Então, aquele livro foi o espelho mágico onde me reencontrava e
revivia. E foi o primeiro livro não didático que li e reli vezes sem conta.
Por outro lado, mais que outras obras literárias, naqueles primórdios —
porque minha família era muito modesta e não tínhamos livros em casa —
também foram influentes no meu despertar literário, a música e
principalmente as letras dos hinos militares cantados por meu pai, que era
Mestre de Banda militar, bem como os poemas recitados por minha mãe,
sobretudo de um poeta amazonense Hemetério Cabrinha, exaltando a vida e
natureza amazônicas, e ainda poemas clássicos de Castro Alves, Gonçalves
Dias, Fagundes Varela, Casimiro de Abreu. Mais adiante, Filgueiras Lima,
poeta cearense, professor e diretor do Colégio Lourenço Filho onde estudei
os primeiros três anos ginasiais (o segundo grau daquele tempo) também me
influenciou no gosto pela Literatura, pois ia de sala em sala de aula dar
avisos escolares e aproveitava para recitar seus poemas — acho que para
despertar nos alunos a sensibilidade e o gosto pela poesia.
Quanto às obras que influenciaram meu aprendizado literário, desordenado e
multifacetado, além do Tom Sawyer posso dizer que foram muitas e muitas, mas
até hoje me sinto aprendiz de escritor. No entanto, destaco ainda dentre
outras: As mil e uma noites; Confesso que vivi (Pablo Neruda); Baú de Ossos
(Pedro Nava); Memórias póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis); Ana
Karenina (Tolstoi); Três Contos (Flaubert); Crime e Castigo (Dostoievski); A
idade da razão (Sartre); Novelas exemplares (Cervantes); A consciência de
Zeno (Ítalo Svevo); Os Miseráveis (Victor Hugo); A Metamorfose (Kafka);
Memorial do Convento (José Saramago); O Eu profundo e os outros Eus
(Fernando Pessoa); A vida e as opiniões do cavalheiro Tristam Shandy
(Laurence Stern); Perto do coração Selvagem (Clarice Lispector); O Escritor
e seus fantasmas (Ernesto Sábato); Foi assim (Natalia Ginzburg); Os
sofrimentos do jovem Werther (Goethe); Ficções (J. L. Borges); Histórias
Extraordinárias (Edgar Allan Poe); e vários contos de Gorki, Tchekhov,
Averchenko e Juan Carlos Onetti.
OA – Nascido em Manaus, você viveu parte da infância em Fortaleza, mudando-se
a seguir para o Rio de Janeiro, ou seja, conheceu desde muito cedo o Norte,
o Nordeste e o Sudeste do Brasil. É claro que essas experiências ampliaram a
sua visão e compreensão da realidade brasileira. Elas o ajudaram, igualmente,
a formar-se como escritor? Sua criatividade teve fontes telúricas?
CT – De fato, essas mudanças na infância e juventude tiveram grande
influência na minha visão da realidade brasileira, e logo compreendi que o
Brasil não era um país uniforme, mas, no meu ponto de vista, sim, vários
países — aqui e ali com suas conotações geográficas, climáticas, sociais,
raciais, e de costumes — unidos fundamentalmente pelo idioma português. Isso
teve influência nas minhas emoções, na minha visão do país e, claro, mais
tarde, na minha literatura. Porém, não creio que a minha expressão criativa
tenha apenas fontes telúricas, já que outras experiências culturais e
acadêmicas, bem como muitos anos vivendo em outros países, também
contribuíram.
OA – Quando você estreou na literatura? Como foram esses primeiros passos no
caminho literário: fáceis ou nem tanto?
CT – Eu já escrevia eventualmente textos de cunho sociológico e político no
Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, mercê de uma formação acadêmica na
Fundação Getúlio Vargas, que era muito focada nesses aspectos. Mas a minha
estreia na literatura foi com Memórias da Liberdade, teoricamente um tipo de
obra que os escritores escrevem, quase sempre, em fim de carreira. Todavia,
na época, eu vivia em Madri (Espanha) e estava influenciado pelo livro
Confesso que vivi, do Pablo Neruda, que lera e relera. Quando me dei conta,
já estava contando também minhas experiências vividas, e ainda não
completara quarenta anos de idade. É um livro de reminiscências,
principalmente dos meus tempos infantis no Amazonas, Pará, Ceará e começo da
adolescência no Rio de Janeiro. Publicar no Brasil foi difícil. A Editora
faliu antes de editar o livro. Na época, 1985, eu já trabalhava em Macau
(China). Vim ao Brasil em férias, fiz um acordo com o editor e recebi de
volta os meus originais em Tabelião e Cartório. Depois, às minhas expensas,
editei e publiquei Memórias da Liberdade nas gráficas de um amigo e com o
selo da editora falida, porém com a distribuição comercial por minha conta.
Doei trezentos exemplares para a Biblioteca Nacional, contratei um
distribuidor particular e o livro foi razoavelmente distribuído. De outra
parte, o lançamento foi com "pompa e circunstância", em Macau, naquela época
ainda território chinês sob administração portuguesa, com apoio de jornais,
personalidades culturais lusitanas e chinesas da época. Saíram algumas boas
resenhas em português e chinês nos jornais locais. Tenho ainda alguns
recortes das matérias publicadas, e que hoje estão digitalizadas no meu site
literário www.carlostrigueiro.com.
OA – Você trabalhou, por décadas, no Banco do Brasil. Como foi essa etapa de
sua vida? As atividades profissionais se contrapunham ao seu fazer artístico
ou, pelo contrário, completavam-no?
CT – Trabalhei 32 anos no Banco do Brasil. Foi uma experiência riquíssima
porque eu viajava por terra, mar e ar, implantando serviços bancários pelo
país. Conheci muito dos interiores brasileiros, isolados, populações
praticamente fora do mapa e também cidades do litoral. Na época, o Banco do
Brasil realizava serviços por conta do Banco Central, recém-criado, e que
ainda não tinha estrutura. Imagine que viajei várias vezes, em
navios-transporte da Marinha de Guerra, levando numerário para as principais
agências distribuidoras da moeda corrente nacional, desde Paranaguá (PR) até
Manaus (AM), de porto em porto, nas capitais e algumas cidades da bacia
amazônica. Essas experiências aliadas à curiosidade natural do escritor
foram importantes mananciais literários.
OA – De 1980 a 1996 você morou no exterior. O que resultou da sua passagem
pelos países tão dessemelhantes como a Itália e a China: a evolução de sua
obra para o lado cosmopolita ou, quem sabe, a redescoberta do Brasil visto,
de longe, com outros olhos?
CT – Já havia estudado em Roma (Itália) no biênio 1973/74, como bolsista
metade do Banco do Brasil e metade do Governo italiano. Depois, entre 1980 e
1996, vivi e trabalhei em Madri (Espanha), Roma (Itália), Macau (China) e
Chicago (EUA). Foram experiências notáveis, inclusive porque o primeiro
impacto pessoal que sofri entre culturas tão diversas, apesar de ter algum
conhecimento técnico, foi o reconhecimento da minha ignorância artística,
musical, histórica e mesmo literária. A oportunidade de pisar em solos
históricos da Europa e do Oriente, de visitar museus como o Prado, o Louvre,
o Vaticano, a Academia de Artes de Florença, o Instituto de Arte de Chicago,
ou caminhar, ao vivo, sobre as ruínas milenares do império romano, reviver a
hegemonia ibérica medieval, e sentir a milenar cultura chinesa nas crendices
do dia a dia. Assim, no plano literário, acho que, para um espírito
observador, seria inevitável adquirir uma visão cosmopolita da aventura
humana. Claro que tudo isso me proporcionou comparações com a cultura
brasileira e, depois, transpareceu direta ou indiretamente nos meus textos.
OA – Quem é Carlos Trigueiro antes de tudo: contista de Confissões de um
anjo da guarda ou romancista de Libido aos pedaços? Qual é seu gênero
preferido?
CT – Penso que sou os dois, ou até mais que isso, pois ainda me arrisco na
poesia, tendo alguns poeminhas publicados em coletâneas brasileiras e
portuguesas. De todo modo, eu fico mais à vontade na brevidade do conto.
OA – Diversos críticos percebem nos seus textos, onde os entes sobrenaturais
atuam ao lado das pessoas comuns, traços característicos do dito realismo
fantástico. Você concorda com eles? Ou talvez esteja contra todos aqueles
rótulos que se costuma pôr em obras de ficção e seus autores?
CT – Gosto do chamado "realismo fantástico". Tem a ver com os meus devaneios,
com as minhas experiências de vida em várias culturas e mundos diferentes e,
sobretudo, com a constatação da nossa fragilidade humana impressionável, de
natureza misteriosa aqui e corruptível ali, inconformada com a nossa
infelicidade metafísica, com a consciência da mortalidade da carne — no
dizer de Sábato — e de sermos meros figurantes — insignificantes e
infinitesimais — soprados e levados pela poeira cósmica.
OA – Seus livros parecem bem diferentes entre si no que diz respeito ao
conteúdo e, não raro, à construção estilística. Há, todavia, um tema
principal, uma ideia abrangente que os perpassa, uma espécie de "marca
registrada" de Carlos Trigueiro?
CT – Meus livros são mesmo diferentes um do outro, ainda que o estilo seja
aqui e ali mais ou menos identificável. Na trilogia da feiura, com O Clube
dos feios (feiura estética), O Livro dos Ciúmes (feiura sentimental) e O
Livro dos Desmandamentos (feiura social e política do Brasil) esse aspecto
apareceu claro ao crítico e poeta Ivo Barroso, por exemplo, que identificou
nessas obras um fio condutor, ou seja, "o corte visceral das misérias
humanas". Por outro lado, o crítico, escritor, ator e cineasta W. J. Solha
identifica na minha obra certo espírito "machadiano" quanto ao estilo
irônico e repetitivo de palavras na feitura de alguns textos. O poeta e
crítico Affonso Romano de Sant'Anna registrou densidade poética nos meus
textos, bem como uma carga dramatúrgica nos meus romances. Já a professora
Monica Rector — da Universidade da Carolina do Norte / EUA — em um longo
ensaio na Revista Taller de Letras, da PUC de Santiago / Chile — diz que
meus contos em O Clube dos Feios parecem parábolas, têm conteúdo moral e
revelam a universalidade dos sentimentos do homem.
OA – Em 1995, seu livro O clube dos feios e outras histórias extraordinárias
entrou no catálogo da distribuidora nova-iorquina Luso-Brazilian Books,
espalhando-se, a partir dali, pelas universidades e bibliotecas dos Estados
Unidos. Foi um verdadeiro salto qualitativo ou apenas uma daquelas
oportunidades fortuitas que o fado nos oferece de vez em quando?
CT – Acho que foi um desguio do destino. De repente, o livro foi parar em
várias bibliotecas universitárias norte-americanas, talvez pelo título,
talvez pelo conteúdo de "histórias extraordinárias", talvez porque
professores brasileiros de Literatura latina em universidades americanas
conheciam bem o livro e alguns também o autor. E o conto O Clube dos feios
foi tema de palestras em universidades. O conto Associação dos indivíduos de
apelido Cheong, por exemplo, foi publicado na revista literária "The
America's Review" da Universidade de Houston (Texas), com tradução para o
espanhol pelo editor, na época, Mario Flores. Também me impressionou o
interesse norte-americano quanto ao O Livro dos Desmandamentos que passou a
constar do acervo da Biblioteca do Congresso dos EUA, e, ali, ter uma
resenha oficial que diz sobre a obra: "importante ferramenta não oficial
para entender a realidade sociocultural e política do Brasil". Mais tarde, a
Revista literária Metamorphoses, periódico do Smith College da Universidade
de Massachusetts, publicou capítulos agrupados do mesmo livro e com tradução
de Clay Resnick.
OA – Numa das suas entrevistas você diz: "Se pudesse voltar ao passado e
primeiro livro, não assinaria Carlos Trigueiro e, sim, algo como Karlowz
Tryghwro, pois a preferência brasileira (...) prima por autores com Y, K e W
no nome". Seria monstruoso, se não fosse verdade, não é? Como explicaria tal
desinteresse pela literatura nacional? Por que o princípio de que "tudo
quanto vier de fora é melhor" está tão difundido, se não dominante, no meio
dos leitores?
CT – Essa pergunta é uma bomba atômica sobre o "cartel" — aqui um eufemismo
de "quadrilha" que domina a produção, distribuição e marketing dos produtos
do nosso parque editorial. Basta ler a lista dos livros mais vendidos em
qualquer veículo da mídia: há raríssimos livros de autores nacionais,
principalmente na Ficção, a menos que seja de autor vinculado ao ramo
artístico e já tenha projeção nacional nas mídias e TV principalmente. Creio
que, além do mencionado, de sermos compradores de direitos autorais
literários em vez de vendedores, essa situação contém ainda fatores
marcadamente culturais. No século XIX, Machado de Assis, por exemplo,
ironicamente e bem ao seu estilo, descrevia a curiosidade (de quem recebia)
sobre a procedência dos chapéus masculinos (com selo estrangeiro ou nacional
no lado interno da aba dos chapéus) entregues na entrada das mansões que
promoviam festas. Nelson Rodrigues, já no século XX, por sua vez, espicaçava
o "nosso complexo nacional de vira-latas" em suas crônicas nos jornais. Só a
partir da segunda metade do século XX, em atividades como no futebol ou na
música popular, houve uma espécie de reconhecimento nacional — pelos
brasileiros — de que algo produzido no Brasil pode ser bom.
Historicamente, o império português implantou no Brasil uma colonização
coletora de produtos naturais (pau-brasil, ouro, pedras preciosas, etc.) e,
mesmo depois do ciclo da cana-de-açúcar, impedia qualquer tipo de indústria
de bens no Brasil. Vinha tudo da metrópole, produzido lá ou nos países
aliados da coroa lusitana, principalmente do Império Britânico. Exemplo
banal: no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, inaugurado em 1909, mais ou
menos nos moldes da "Comédie Française" e que dentre outros produtos
estrangeiros ali instalados, ainda hoje estão as louças sanitárias dos
banheiros masculinos — produzidas na Inglaterra. De um modo geral, essa
espécie de "síndrome do estrangeiro" parece haver deixado no inconsciente
coletivo do brasileiro essa deformação cultural — "produto nacional" é
inferior ao "produto estrangeiro" — e isso se vê ainda hoje em vários ramos
industriais, como na indústria vinícola (apesar de termos ótimos vinhos
brancos e espumantes).
Por outro lado, nossa classe política eternizou a herança cultural recebida
das donatarias portuguesas dos séculos XV e XVI, e permanece até hoje
defendendo seus interesses econômicos grupais, familiares, cartoriais, como
se o continental Brasil fosse uma aglutinação de feudos, e assim prossegue
indiferente à institucionalização da educação como motor de desenvolvimento
nacional e de afirmação do país como civilização tropical. Esses aspectos
culturais estão bem delineados no ensaio O Jeito Brasileiro: um fenômeno
cultural que publiquei nas revistas acadêmicas (DeSignis) da Argentina, com
distribuição no mundo acadêmico de língua latina e em ROMANCE NOTES (Univ.
da Carolina do Norte) dos Estados Unidos com distribuição em outros países.
Nossa classe política permanece comprando com artifícios baratos e
eleitoreiros, do tipo "bolsa família", "cotas raciais em universidades," "serviços
públicos" e em outras atividades, a consciência pensante da grande massa
populacional, tal qual faziam os primeiros colonos portugueses ao comprar
com "colares de pedras de vidros coloridos — as miçangas" — as terras
imensas, os rios caudalosos e as matas férteis e naturais dos índios
brasileiros.
Esse desinteresse da classe política brasileira pela educação (sem falar em
Saúde Pública, Saneamento, Transporte Público, malhas rodo e ferroviária,
etc.) se reflete negativamente no comportamento violento da população. Mais
de 56.000 pessoas foram assassinadas em 2012 segundo dados oficiais, ou seja,
um número de mortes equivalente ao de uma guerra como a da Chechênia que
durou de 1994 a 1996, por exemplo. Nossa classe política, deliberadamente,
institui ou promulga leis frouxas e extemporâneas quanto às penalidades
destinadas aos criminosos — já que muitas vezes os facínoras podem ser eles
mesmos: os políticos. Mas, na verdade, tudo isso decorre do desleixo
deliberado quanto aos investimentos no conhecimento, na educação, nos
aspectos civilizatórios.
OA – Qual é, a seu ver, o futuro das belas letras no mundo? A literatura
séria sobreviverá ao dilúvio de escritos vampirescos e afins ou acabará indo
a pique?
CT – Bem, As Mil e uma Noites, A Ilíada e A Odisseia, Édipo Rei, A República,
Dom Quixote, Os Lusíadas, Guerra e Paz, Madame Bovary, Romeu e Julieta, A
Comédia Humana, estão aí mesmo, apesar de escritos já se vão muitas gerações.
Penso que os "modismos" vampirescos, tal como aconteceu com os do Tarzan, da
família Marvel, do Batman não se perpetuarão nos moldes da "grande
literatura". O "consumismo" literário capitalista visa o entretenimento
passageiro e está fortemente ligado aos interesses da mentalidade lucrativa,
enquanto que a grande literatura, de uma forma ou de outra, questiona e
desmascara as limitações e os sofrimentos humanos — dentre tantos, o
martírio da própria consciência quanto à constatação de sua temporalidade
face à eternidade universal, e a angústia de sermos imperfeitos, frágeis,
corruptíveis, efêmeros e miseravelmente transitórios, ou seja: mortais.
OA – Seu recente livro Meu brechó de textos contém algumas obras chamadas de
"poemas de segunda mão". Poderia comentar um pouco sobre o papel que a
poesia desempenha em sua vida? Não é porventura um poeta em potência?
CT – Meu poetar foi sempre caseiro, doméstico. Só muito recentemente tive
coragem de desengavetar alguns poemas antigos e publicá-los em coletâneas.
Um dos responsáveis por isso foi o poeta Affonso Romano de Sant'Anna que ao
ler meus livros de Ficção, em prosa, me escreveu dizendo que os meus textos
continham "densidade poética sem pieguismo e que, com certeza, eu deveria
ter poemas escondidos e engavetados." (sic).
OA – O que significa escrever para você: cumprir uma missão, submeter-se a
um impulso incontrolável ou simplesmente passar o tempo como lhe aprouver?
CT – Nisso, não sou nada original, aliás, sou totalmente adepto do
pensamento de Ernesto Sábato: "O escritor é testemunha do seu tempo, de seu
drama consciente face às imperfeições dele próprio, da sua solidão e dos
desconcertos do mundo ao redor. São mártires de uma época e não escrevem com
facilidade, mas com dilaceramento".
OA – Que conselhos você poderia dar aos escritores iniciantes, a quem aspira,
de certo modo, a seguir seus passos? Vale a pena um jovem de hoje se dedicar
à escrita literária ou é mais prático e seguro optar, por exemplo, pelo
serviço público?
CT – Escrevam, reescrevam e recomecem o que reescreveram. O serviço público,
no meu caso, me proporcionou oportunidades de sobreviver economicamente, de
constatar os desconcertos do mundo através de experiências de vida no País e
no Exterior, mas foi um caso fortuito, um ponto fora da curva. Importante é
não esquecer que fazer literatura maiúscula pode conter um poder catártico
além do testemunhal (como dizia Sábato) e ainda o toque mágico para o
renascimento do Eu profundo e dos outros eus — como na obra de Fernando
Pessoa e seus heterônimos. Enfim, o fazer literário é o relato de antigos ou
permanentes martírios do escritor pela voz e visão sarcásticas dos seus
fantasmas.
(01 de novembro/2014)
CooJornal nº 913
Carlos Trigueiro é escritor
e poeta
Pós-graduado em "Disciplinas Bancárias".
Prêmio Malba Tahan (1999), categoria contos, da Academia Carioca de Letras/União Brasileira de Escritores para “O Livro dos Ciúmes” (Editora Record), bem como o Prêmio Adonias Filho (200ó), categoria romance, para “O Livro dos Desmandamentos” (Editora Bertrand Brasil).
RJ
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