Affonso Romano de Sant'Anna
A REPÚBLICA DOS HOMENS HONRADOS
|
|
For Brutus is a honorable man
Shakespeare
Mas Sarney é um homem honrado
Ricardo Noblat
JÚLIO CÉSAR, peça de Shakespeare. Terceiro ato, cena dois.
Marco Antônio: Amigos, cidadãos, ouçam o que tenho a dizer: Não estou aqui para enterrar o presidente
ou para agradá-lo. O mal e o bem que os homens fazem sobrevivem a eles. E assim será também com o presidente.
Há dias, Dom Luciano Mendes levou ao presidente uma denúncia de que havia corrupção demais no seu governo. Que a corrupção
era tanta que estava superando a do tempo da ditadura.
O presidente deu vários socos na mesa e afirmou: "Meu governo não é corrupto. Não
sou conivente.'' E o presidente é um homem honrado.
E disse mais o presidente: que a corrupção é uma erva daninha e que ela se alastrou no seio da própria Igreja.
Dom Luciano então disse que o "caso Ambrosiano" já havia sido esclarecido pelos
tribunais, e Dom Luciano é um homem honrado.
O presidente disse que quando há comprovação de corrupção ele manda
apurar. E brandiu um processo do BNH tirado da gaveta como exemplo.
Muitos funcionários do BNH, também honrados, vieram a público pedir ao Presidente, que é um homem honrado, que não os
desonre indiscriminadamente, e que aponte quem são os corruptos do BNH.
Nesse ínterim o presidente teve que viajar ao Uruguai e à CoIombia e, lá fora, enfrentou outros problemas. Os jornais, contudo,
continuaram a apresentar acusações de corrupção e jogo de influências, que atingem desta vez não s6 o
procônsul Anibal Teixeira, mas a própria família do presidente e outras pessoas
não menos honradas.
Primeiro
cidadão: Acho que essas coisas têm que ser melhor explicadas.
Segundo cidadão: Se essas acusações não forem apuradas o presidente é conivente.
Terceiro cidadão: Receio que o pior ainda está por vir.
Marco Antônio: Se estivesse aqui apenas para seus corações e mentes pregando a
rebelião e o descrédito, estaria fazendo um grande mal ao presidente, e o
presidente é um homem honrado.
Quando os pobres choram, o presidente chora, quando não tem mais jeito troca de ministros, e quando foi necessário ele fez
comícios em praça pública a favor da democracia. E teve momentos durante o Plano
Cruzado em que o povo o achou o mais honrado de todos.
Primeiro
cidadão: Mas queremos um governo que puna os corruptos.
Segundo cidadão: Acabada a ditadura, que se acabe também com a corrupção.
Terceiro cidadão: Se o presidente quer punir os corruptos basta ler os relatórios do SNI.
Marco Antônio: Não falo para discordar do presidente, que é um homem honrado.
Porém, por
três vezes durante as Lupercais o general Ivan de Sousa Mendes levou-lhe relatórios sobre corrupção direta e
indireta como noticiou a imprensa. Outras vezes o delegado Romeu Tuma
também se referiu a isto. Governadores e outros políticos já abordaram com o presidente o mesmo assunto, mas o presidente diz que
não há corrupção em seu governo que não seja punida, e o presidente é um homem honrado.
Primeiro cidadão: Queremos um governo duro.
Segundo cidadão: Um governo que bote pra quebrar.
Marco Antônio: Meus bons e doces amigos, sei que vocês não são de madeira nem de pedra e que têm
memória.
Tivemos vários governos que vieram para "prender e
arrebentar", e só prenderam os fracos e só arrebentaram os oprimidos.
Naquele tempo a corrupção era possivelmente pior, mas era proibido noticiar.
E, no entanto, aqueles generais e seus ministros eram todos homens honrados.
Primeiro cidadão: É verdade, esta
República sempre foi um "mar de lama"
Segundo cidadão: Não é só na "Nova República", antes também já era assim.
Terceiro cidadão: E no tempo do Império certamente já era assim.
Marco Antônio: Calma, meus caros concidadãos. Sei que é terrível olhar no
chão desse Fórum o cadáver de um sonho. Dizer que a corrupção sempre existiu tem
pouca serventia. É como se, ao ver pegar fogo em sua casa alguém dissesse: a casa do vizinho também arde em
chamas. Na verdade, lembrar que a casa alheia se incendeia não apaga o fogo em nossa casa nem nos faz morrer
sorrindo em meio às brasas.
Primeiro cidadão: Então, o que faremos?
Marco Antônio: Não sei propor grandes ações nem tenho grande sabedoria. Estou falando apenas de
coração aberto. Só nos resta esperar que um homem honrado venha fazer o que outros homens honrados não
souberam, não quiseram ou não puderam fazer.
14-02-88
Affonso Romano de Sant'Anna
escritor, cronista e jornalista
Editora Rocco
santanna@novanet.com.br
Transcrição autorizada pelo
autor
Direitos Reservados