novembro 2001

AFFONSO ROMANO
ARQUIVO

 

    

Affonso Romano de Sant'Anna

   

A REPÚBLICA DOS HOMENS HONRADOS

 

For Brutus is a honorable man
Shakespeare

Mas Sarney é um homem honrado
Ricardo Noblat

JÚLIO CÉSAR, peça de Shakespeare. Terceiro ato, cena dois.

Marco Antônio: Amigos, cidadãos, ouçam o que tenho a dizer: Não estou aqui para enterrar o presidente ou para agradá-lo. O mal e o bem que os homens fazem sobrevivem a eles. E assim será também com o presidente.

Há dias, Dom Luciano Mendes levou ao presidente uma denúncia de que havia corrupção demais no seu governo. Que a corrupção era tanta que estava superando a do tempo da ditadura.

O presidente deu vários socos na mesa e afirmou: "Meu governo não é corrupto. Não sou conivente.'' E o presidente é um homem honrado.

E disse mais o presidente: que a corrupção é uma erva daninha e que ela se alastrou no seio da própria Igreja. Dom Luciano então disse que o "caso Ambrosiano" já havia sido esclarecido pelos tribunais, e Dom Luciano é um homem honrado.

O presidente disse que quando há comprovação de corrupção ele manda apurar. E brandiu um processo do BNH tirado da gaveta como exemplo.

Muitos funcionários do BNH, também honrados, vieram a público pedir ao Presidente, que é um homem honrado, que não os desonre indiscriminadamente, e que aponte quem são os corruptos do BNH.

Nesse ínterim o presidente teve que viajar ao Uruguai e à CoIombia e, lá fora, enfrentou outros problemas. Os jornais, contudo, continuaram a apresentar acusações de corrupção e jogo de influências, que atingem desta vez não s6 o procônsul Anibal Teixeira, mas a própria família do presidente e outras pessoas não menos honradas.

Primeiro cidadão: Acho que essas coisas têm que ser melhor explicadas. 
Segundo cidadão: Se essas acusações não forem apuradas o presidente é conivente. 
Terceiro cidadão: Receio que o pior ainda está por vir. 
Marco Antônio: Se estivesse aqui apenas para seus corações e mentes pregando a rebelião e o descrédito, estaria fazendo um grande mal ao presidente, e o presidente é um homem honrado.

Quando os pobres choram, o presidente chora, quando não tem mais jeito troca de ministros, e quando foi necessário ele fez comícios em praça pública a favor da democracia. E teve momentos durante o Plano Cruzado em que o povo o achou o mais honrado de todos.

Primeiro cidadão: Mas queremos um governo que puna os corruptos.
Segundo cidadão: Acabada a ditadura, que se acabe também com a corrupção.
Terceiro cidadão: Se o presidente quer punir os corruptos basta ler os relatórios do SNI.
Marco Antônio: Não falo para discordar do presidente, que é um homem honrado.

Porém, por três vezes durante as Lupercais o general Ivan de Sousa Mendes levou-lhe relatórios sobre corrupção direta e indireta  como noticiou a imprensa. Outras vezes o delegado Romeu Tuma  também se referiu a isto. Governadores e outros políticos já abordaram com o presidente o mesmo assunto, mas o presidente diz que não há corrupção em seu governo que não seja punida, e o presidente é um homem honrado.

Primeiro cidadão: Queremos um governo duro. 
Segundo cidadão: Um governo que bote pra quebrar. 
Marco Antônio: Meus bons e doces amigos, sei que  vocês não são de madeira nem de pedra e que têm memória.

Tivemos vários governos que vieram para "prender e arrebentar", e só prenderam os fracos e só arrebentaram os oprimidos. Naquele tempo a corrupção era possivelmente pior, mas era proibido noticiar. E, no entanto, aqueles generais e seus ministros eram todos homens honrados.

Primeiro cidadão: É verdade, esta República sempre foi um "mar de lama"
Segundo cidadão: Não é só na "Nova República", antes também já era assim.
Terceiro cidadão: E no tempo do Império certamente já era assim.
Marco Antônio: Calma, meus caros concidadãos. Sei que é terrível olhar no chão desse Fórum o cadáver de um sonho. Dizer que a corrupção sempre existiu tem pouca serventia. É como se, ao ver pegar fogo em sua casa  alguém dissesse: a casa do vizinho também arde em chamas. Na verdade, lembrar que a casa alheia se incendeia não apaga o fogo em nossa casa nem nos faz morrer sorrindo em meio às brasas.
Primeiro cidadão: Então, o que faremos?
Marco Antônio: Não sei propor grandes ações nem tenho grande sabedoria. Estou falando apenas de coração aberto. Só nos resta esperar que um homem honrado venha fazer o que outros homens honrados não souberam, não quiseram ou não puderam fazer.

14-02-88



Affonso Romano de Sant'Anna
escritor, cronista e jornalista
Editora Rocco
santanna@novanet.com.br
Transcrição autorizada pelo autor

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